Que o Brasil manteve por muito tempo uma sociedade marcada pela escravidão africana, onde o preconceito, o trabalho pesado, os castigos físicos e a falta de liberdade era chocantemente (para os dias de hoje) comum à sociedade, todos, ou quase todos nós sabemos. Mas, mesmo em meio a um tema aparentemente conhecido, algumas peculiaridades daquele passado, ainda são capazes de surpreender e revelar fatos no mínimo curiosos.

Se na época da 2ª Guerra Mundial, quando o Brasil lutava ao lado das Forças Aliadas, contra a aliança militar do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) nós riomafrenses, apesar da formação étnica da nossa população, fomos testemunhas de hostilidades contra descendentes de alemães, imagine como eram tratados os africanos e seus descendentes em uma época em que o Brasil sequer discutia uma possível abolição.

A frase inicial que dizia “Ordeno a vosmicês a fazer com urgência posturas…†já revela o tom quanto a importância e a exigência dada pelo governo paulista ao tema tratado na correspondência emitida do Palácio do Governo de São Paulo, em 22 de junho de 1831 e dirigida ao Presidente da Câmara da Vila do Príncipe (Lapa), à qual, sempre vale lembrar, fizemos parte até 1870.

Mas o que pode inicialmente parecer tratar-se de algo extremamente vital para a área econômica ou política da nossa então província, na verdade consistia mais em uma adequação de uma situação social, aparentemente comum do dia-a-dia da década de 1830, pois o objeto daquela mensagem era a proibição da permanência em tabernas (bares, que vendiam bebidas alcoólicas e comidas) para “negros e mulatos†(conforme expressão empregada pela própria correspondênciaâ€, pois provavelmente, imaginava-se que esses estabelecimentos, locais tipicamente de lazer, deveriam ser dedicados exclusivamente aos “brancosâ€.

Como acreditava-se não bastar simplesmente a ordem, a mesma mensagem estabelecia que a obediência dos estabelecimentos comerciais e também dos escravos à ordem paulista, tinha que ser comprovada, ou melhor verificada “in loco†por Ficais, aos quais recaia a ameaça das “penas da lei† caso permitissem, por vontade própria ou mesmo negligência, os chamados “ajuntamentos de mulatos e negros†nas tabernas.

Além da fiscalização, a informação deveria ser divulgada aos “senhores de escravos“ (proprietários) a quem cabia saber também que, em caso de desobediências de escravos encontrados nessa situação, forças civis e militares poderiam ser acionadas para “restabelecer o sossego e a subordinação entre os escravosâ€, bastando para isso a comunicação ao Juiz de Paz da Freguesia (que tinha também entre suas atribuições, funções policiais) ou então, em caso de urgência, ao Fiscal de Quarteirão ou mesmo o Delegado local.

Uma medida visivelmente dura e preconceituosa que impunha mais uma restrição aos já “bem restritos†escravos brasileiros, numa das épocas mais complexas do nosso sistema escravista.

Mas, se raciocinarmos não pela proibição em si, mas pelo “o que†era proibido, podemos imaginar que, apesar da condição de escravos, muitos deles (e provavelmente muitos mesmo), frequentavam as tabernas (que vale lembrar, eram locais típicos de lazer) porque senão, não haveria uma motivação de âmbito estadual, no sentido de proibir tal ação. O que, apesar de mínimo, pode até arranhar uma imagem (na visão atual) da escravidão brasileira como algo totalmente rígido, inflexível e sem qualquer tipo de exceção.

Em 1831, ano da correspondência do governo paulista, quando a proibição do tráfico negreiro “ainda engatinhava†e a liberdade era um sonho que viria a se concretizar somente meio século depois (pelo menos no que coube à Lei Ãurea de 1888), provavelmente escravos que possuíam funções que permitiam sua circulação pelas cidades, entre um afazer e outro, se reuniam no bar para uma bebericada.

Ainda fazendo uma leitura inversa, se alguns escravos costumavam freqüentar tabernas, também é possível imaginar que os taberneiros, os comerciantes proprietários desses estabelecimentos, consentiam com suas presenças, pois como provavelmente não lhes davam bebida ou comida de graça, mesmo escravos, eles eram fregueses.

Assim como proibir escravos de frequentar os mesmos locais que os brancos representa uma atitude de segregação e de preconceito explícito, a mesma ordem acaba por revelar que  essa era uma situação não só possível até então, como uma realidade próxima de nós, que é claro não atingia a todos os escravos, mas ao menos fazia uma parcela sentir-se “livre†por alguns momentos.